A sentença da Justiça do Rio que absolveu todos os réus do caso do incêndio do Ninho do Urubu, que vitimou dez meninos das categorias de base do Flamengo em fevereiro de 2019, deixou as famílias dos garotos em choque. A decisão em primeira instância cabe recurso, que será pedido pela Promotoria e pelos advogados dos familiares.
— Estamos em luto, o luto voltou com mais força — diz Rosana Souza, mãe de Rykelmo, um dos meninos mortos no incêndio. — Fiquei sabendo ontem (terça-feira) à noite quando colocaram no grupo das famílias. Sabe quando se toma um choque e fica meio aérea? Foi assim que fiquei ao ler a notícia. Nós levamos um choque no dia que aconteceu o incêndio, e nós estamos relembrando aquele dia de novo.
Rosana se apega a um fio de esperança para que a ‘justiça dos homens’ seja feita. Ela prefere acreditar na justiça divina e não esconde a indignação com a decisão monocrática do juiz Tiago Fernandes Barros, 36ª Vara Cível da Comarca da capital, onde o processo tramitava desde 2021.
— Eram 10 garotos que tiveram o sonho interrompido e ninguém é culpado. É um descaso que fizeram com os meninos e conosco. Cadê a pessoa que estava responsável por cuidar dessas crianças naquela noite, o responsável por verificar os extintores que falharam na hora? Foi a chuva? O relâmpago? Ninguém aqui na terra tem culpa? Essa é a nossa indignação — questiona Rosana, que vive em Limeira, interior de São Paulo, e afirma não ter tido contato com representantes do Flamengo ao longo desses anos.
Entre as dez vítimas estava o jovem Jorge Eduardo Santos, de 15 anos, filho da mineira Alba Valéria Santos. Ela também soube da absolvição na noite de terça-feira por meio do grupo de mensagens da associação que reúne os familiares dos meninos. O sentimento de revolta e de injustiça é sem tamanho.
— Parece que fomos nós os culpados de colocar nossos filhos lá (no Ninho). Deixamos eles lá e os recebemos em caixões. Quem recebeu a sentença fomos nós — declara.
Alba, no entanto, não se dá por vencida. Ela acredita na revisão da sentença em outras instâncias.
— Ainda acreditamos que a Justiça possa ser feita. A luta está longe de acabar — diz Alba.
Associação dos familiares protesta contra decisão
A Afavinu, associação que reúne os familiares das dez vítimas fatais do incêndio no CT do Flamengo, em fevereiro de 2019, protestou contra a decisão da Justiça do Rio de absolver todos os setes réus restantes do processo criminal aberto após a tragédia. Por meio de uma nota oficial, eles classificaram a sentença de “grave afronta à memória das vítimas e ao sentimento de toda a sociedade”.
“A Associação dos Familiares de Vítimas do Incêndio do Ninho do Urubu (Afavinu), que congrega mães, pais, irmãos e demais familiares das dez vítimas fatais da tragédia ocorrida em 8 de fevereiro de 2019 no alojamento da base do Flamengo, manifesta seu profundo e irrevogável protesto diante da decisão proferida pela 36ª Vara Criminal da Comarca da Capital do Estado do Rio de Janeiro, que absolveu em primeira instância todos os sete acusados no processo criminal resultante dessa tragédia.
Entendemos que o papel da Justiça não se limita à aplicação da lei em casos individuais, mas exerce uma função pedagógica essencial na prevenção de novos episódios semelhantes, no envio da mensagem clara à sociedade de que negligências de segurança, falhas na estrutura técnica e irresponsabilidades não serão toleradas — e não cumprir essa função configura, para nós, grave afronta à memória das vítimas e ao sentimento de toda a sociedade.
Relembremos que os jovens falecidos — adolescentes em formação, atletas da base — dormiam em contêineres improvisados, sem alvará adequado, com indícios de falha elétrica, grades de janela que dificultavam a saída, entre outras condições de insegurança”, inicia o comunicado.
A sentença apontou “ausência de demonstração de culpa penalmente relevante” e “impossibilidade de estabelecer um nexo causal seguro entre as condutas individuais e a ignição”.
A decisão é em primeira instância. Ou seja: cabe recurso. Os familiares já anunciaram que seguirão “em busca de Justiça”. Diante da absolvição dos réus, eles pedem maior rigor no acompanhamento do caso.
“A absolvição dos acusados, sob o argumento de que não se conseguiu individualizar condutas técnicas ou provar nexo causal penalmente relevante, renova em nós o sentimento de impunidade e fragiliza o mecanismo de proteção à vida e à segurança dos menores em entidades esportivas, formativas ou assistenciais no país. A AFAVINU seguirá em busca de Justiça e na esperança de que a decisão seja revista e assim reitera seu pedido de que o processo seja acompanhado com rigor pelos órgãos de recurso para que a sociedade receba a mensagem de que tais condutas não ficarão impunes.
Para que a morte destes adolescentes não seja em vão, seguimos exigindo dos órgãos de fiscalização (“municipal e estadual) e do poder público em geral — inclusive esporte, juventude e fiscalização de edificações — a implementação de medidas concretas para tornar obrigatórias auditorias frequentes e manutenção preveentiva em alojamentos de atletas, jovens/menores em todos os clubes do país, de modo que tragédias irreparáveis como a do Ninho do Urubu, não se repitam.
Reafirmamos que a memória dos jovens não será silenciada: os nomes deles, suas vidas interrompidas em circunstâncias evitáveis, exigem que continuemos vigilantes”, continua a associação dos familiares.
Além dos sete réus beneficiados com esta decisão, outros quatro já haviam escapado da responsabilização criminal. Dois destes tiveram denúncia rejeitada, um foi absolvido e o presidente do clube na ocasião, Eduardo Bandeira de Mello, teve a possibilidade de punição extinta em 2021, por prescrição.
O Ministério Público havia pedido a condenação de todos os 11 denunciados. Eles respondiam pelos crimes de incêndio culposo qualificado com resultado de morte de dez pessoas e lesão corporal grave em outras três.
“A decisão judicial, ao não reconhecer a responsabilização penal, representa uma falha grave do sistema de justiça em seu papel pedagógico — e como tal, reforça em nós o dever de mobilização civil para fortalecer os mecanismos de fiscalização, transparência e responsabilidade com espaços de formação de jovens.
Conclamamos a imprensa, entidades de defesa dos direitos humanos, movimentos esportivos e toda a sociedade a não permitir que essa decisão se transforme em precedente de que a segurança de crianças e adolescentes pode ser tratada com negligência criminosa. A vida dos nossos filhos tem um valor irreparável e em memória aos 10 garotos inocentes lutaremos, até o fim, por uma Justiça efetiva e capaz de inibir novos delitos com sentenças que protegem as vítimas e não os algozes.
Aos torcedores do Flamengo e a todos os que amam o futebol e as crianças, a AFAVINU faz um apelo: que a paixão pelos clubes se traduza também em compromisso com a vida. Que o amor pelo esporte, que move milhões de corações, seja também amor pela segurança, pela ética e pela memória daqueles dez meninos que sonhavam em vestir, com orgulho, a camisa rubro-negra ou de outros mantos sagrados. O verdadeiro espírito esportivo exige empatia, responsabilidade e humanidade. Honrar esses valores é proteger as futuras gerações de atletas e garantir que o futebol continue sendo motivo de alegria — nunca de luto”, finaliza a nota dos familiares.
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'Quem recebeu a sentença fomos nós', diz mãe de uma das vítimas do incêndio do Ninho após absolvição dos réus na Justiça





